O meu sentimento fica na boca do estômago. É fácil achar: só colocar o punho fechado dois palmos acima do umbigo. Pronto, é aí que eu sinto. É o coração que fica aí? O diafragma? É aí que se aperta com força quando é preciso desengasgar, foi o que eu vi em um vídeo. Como eu moro sozinho, tentei aprender a manobra a ser feita em si mesmo em uma cadeira, e tentei fingir que eu acredito que conseguiria, sim, fazê-la sozinho. Melhor aprender a mastigar devagar.
O sentimento que mais me perturba é o de vazio. Eu o chamo assim, mas não é por não sentir nada, é justamente por sentir um tanto e um peso, só que um peso vazio. Uma ausência significativa. Uma tristeza física, que, quando se instala na boca do estômago, no diafragma, ou no coração, não basta chorar.
Quando a dor é física assim, eu sinto ânsia de vômito. Enrolo em mim mesmo, em posição fetal, e torço para conseguir pegar no sono sem perceber. Raramente consigo. A bolha vazia comprime os meus órgãos, não sei quais. Já deu para ver que conheço pouco das nomenclaturas do que me habita por dentro. Do sentimento eu entendo um pouquinho, porque me esforço para tentar entender. Tento apertar essa bola vazia com as mãos, com o punho fechado. Tenho a sensação que, se eu conseguir preencher o espaço de ausência com o punho, eu paro de senti-la. Por isso abraço o travesseiro com força contra o vazio, na tentativa de preenchê-lo. Não adianta, só engana um pouco.
Hoje meu vazio na boca do estômago tem o cheiro da água suja do Guaíba, que eu senti quando fiquei em frente à Casa de Cultura Mario Quintana, casa de algumas das minhas mais felizes memórias, lugar onde fui com a maioria das pessoas que eu mais amo nesse mundo. Senti as lágrimas brotarem depois de escrever essa última frase. Eu não quero alagar as memórias, mas como é difícil preservá-las secas.
Meu vazio também tem cor. É marrom-claro, como água suja, cor-de-medo, cor-de-pavor. Com gosto de impotência, misturado com revolta e salpicado de angústia. É sabor de quem queria poder doar mais do que doou. De quem não aguenta olhar a cara dos governantes irresponsáveis e inertes que agora fingem que as enchentes, que se repetem, são surpresa. De quem queria poder obrigar a água a seguir seu curso para longe das ruas e para dentro das torneiras. De quem queria ser potente. Só que eu sou pouco, sou só. Resta fazer o que consigo, temos todos de fazer, não se pode parar de fazer, mesmo que doa. Só que dói. E dói. É uma dor com vazio.
Dói tanto em mim que fica difícil imaginar a dor de quem alagou casa, amores, sonhos. Se eu, que hoje durmo na minha cama, tenho esse embrulho absurdo dentro do corpo, como fica a dor de quem perdeu tanto? Que imensidão de dor sentem?
Ponderei se iria escrever sobre a minha dor porque passei os últimos dias dimensionando-a e percebendo-a pequena, ainda que enorme para meu minúsculo tamanho. Ponderei se iria escrever sobre a minha dor porque esse momento não é sobre mim, que, privilegiado, “só” vou ficar sem água encanada e energia dentro de casa. Ponderei e, no meu egoísmo, escrevi. Talvez eu queira expressar o sentimento complexo de: (1) saber que pouco importa o que eu sinto no meio do todo; (2) precisar dizer que eu sinto demasiadamente, absurdamente, desesperadamente. Eu sinto tanto e tanto e tanto que me contorço e me revolto, que não aguento e não me aguento. Que penso no absurdo que é ter de enfrentar o que tantos estão enfrentando.
Talvez eu queira dar vazão à minha dor para que eu consiga viver. Talvez eu tenha a ilusão de que as minhas palavras sirvam de algo, no reino nebuloso dos sentimentos, a quem identificou alguma coisa identificável aqui. Eu sei que é preciso seguir – preciso me lembrar. Se não consigo me livrar de tanta dor com a escrita, ao menos posso desenhá-la, colocá-la diante de mim, para seguir apesar dela, ainda com ela. Eu me sinto pouco, me sinto nada, me sinto vazio. Sinto uma bola firme e oca, pesada e vazia, na boca do estômago. Com ela vou dormir. Mas com ela vou acordar. E fazer o que me cabe. E dormir. E depois acordar. Se arrancá-la é impossível, preciso entendê-la. Quem sabe, assim, de tanto eu viver, ela possa se transformar em outra coisa.