Rabiscos

Rabiscos me lembram a minha mãe. Ela tem o costume de rabiscar papéis enquanto fala ao telefone, essa é uma memória que eu tenho da época de criança. Eu a olhava enquanto ela conversava com alguém, e ela rabiscava um papel que ficava na bancada junto do telefone. Às vezes era uma anotação que tinha tudo a ver com a conversa, um recado, o telefone de alguém. Mas nunca parava por aí. Com a caneta nas mãos, outras coisas surgiam. Sublinhados, desenhos, riscos soltos, rabiscos. E às vezes a conversa toda era acompanhada de riscos, mais ou menos conscientes, que minha mãe fazia enquanto falava. Embora eu use o passado, porque falo da infância, os rabiscos da minha mãe ainda são presentes. Na última vez que a visitei, eles estavam lá: anotações diferentes e dispersas em um mesmo caderno, na capa e na contracapa, no início e no fim. Cadernos rabiscados. Imagino que minha mãe fez os rabiscos enquanto falava ao telefone. Imagino que ela fez como na infância: terminou a conversa e seguiu rabiscando, absorta nos próprios riscos. Ver minha mãe rabiscando me transmitia paz, porque parecia que ela estava em paz. Era uma pausa no mundo todo para um rabisco que ela não planejou, mas que seguia fazendo. Ela não é muito fã de planejar tudo nos mínimos detalhes, de certo por isso aproveita o momento livre dos rabiscos. E na hora dos rabiscos, qualquer papel é papel, tudo está sujeito a ficar cheio de riscos, de desenhos diversos em meio a informações importantes. Nem o papel toalha da mesa da cozinha escapava: as flores desenhadas em baixo relevo viravam azuis ou vermelhas, a depender da caneta que estava por perto.

Mas esse texto não é todo sobre os rabiscos da minha mãe, é sobre meus rabiscos também. É que esses dias eu me dei conta dos meus próprios rabiscos, da prática que herdei, junto de tantas outras coisas, da minha mãe. Não sei não ter um papel, na escrivaninha, embaixo de uma caneta pronta pro ataque. Posso estar diante de diversos arquivos de texto no computador, consciente de que poderia abrir um bloco de notas digital e escrever o que quer que seja ali, mas tem vezes que só os rabiscos salvam. E precisa ser assim, meio desorganizado, na iminência de eu perder aquela informação, como os rabiscos da minha mãe. Já anotei ideias centrais da minha pesquisa num papel qualquer, que um desavisado jogaria fora. Já planejei um ano inteiro de projetos de ensino para três turmas num pequeno rabisco, frente e verso. E toda vez que eu precisava consultar meu próprio planejamento, remexia nos papéis para encontrar aquele que eu tinha deixado estrategicamente naquele cantinho da escrivaninha, e que desestrategicamente sempre mudava de lugar. Dou risada sozinho do fato de que passei o ano inteiro correndo o risco de perder meu planejamento simplesmente porque escolhi deixá-lo surfando de um lado a outro, entre livros e folhas soltas.

E isso tudo até aqui é para criar contexto, o que eu quero contar mesmo vem a seguir. É que quando a gente pensa, gasta um ou dois segundos, e na hora de escrever a coisa se demora mais… A história que eu quero contar é sobre as letras mágicas na minha gaveta.

O cenário é a minha infância, é a minha mãe no telefone, e os rabiscos. Tinha uma folha A4 perto do telefone, toda rabiscada, com números de telefone, nomes, flores desenhadas, uma porção de coisas. O que tinha exatamente eu não me lembro, mas tinha alguma coisa escrita pela minha mãe na sua linda letra emendada. Eu achava a letra da minha mãe linda, e ainda acho. A assinatura dela é estilosa, e eu, se pudesse, imitaria todinha, mas meu nome não começa com “H”. Ela escrevia aquele rabisco emendado, cheio de palavras, ostentando a beleza das consoantes e das vogais. Eu não sabia escrever ainda, só sabia o formato e o nome das letras maiúsculas. Gostava de pedir para minha mãe me ajudar a fazer cartas para o meu pai, para entregar quando ele chegasse do trabalho. Eu dizia o que queria escrever e ela ditava as letras, uma por uma, dizendo quando tinha espaços e me lembrando para que lado eu devia fazer o “R” e o “P”. Eram letras enormes, maiúsculas, separadas, escritas com muito esforço, não eram as letras emendadas que minha mãe escrevia com tanta facilidade. Eis que um dia, no auge do meu desejo de escrever que nem ela, eu peguei aquela folha A4 rabiscada, achei um cantinho em branco, e fiz um rabisco também. Fiz uma linha cheia de ondinhas, imitando o que poderia ser a letra emendada que eu queria saber fazer. Não podia ter tanto mistério, já que minha mãe parecia escrever sem esforço algum. Pensei no que eu queria escrever e fiz as ondinhas. Levei para minha mãe e perguntei se eu tinha escrito certo, se dava para entender, se aquelas eram as letras.

Minha mãe, que tem o coração doce saído de um conto de fadas (e não, eu não estou exagerando), não disse que não, que não tinha nenhuma letra naquelas ondinhas rabiscadas. Mas também não disse que sim, não fingiu que lia algo no meu rabisco. Ela disse, apenas, que aquele rabisco se transformaria, com o tempo, em letras.

Pois bem, agora chegamos às letras mágicas na gaveta.

Eu fiquei muito feliz com aquela informação que minha mãe, que sempre sabia de tudo, me contou. Aquele papel, que teria minha primeira frase escrita com letras bonitas como as da minha mãe, não podia se perder. Não podia ficar pela sala por perto do telefone para eventualmente ser jogado fora quando não houvesse mais espaço em branco. Peguei a folha e guardei numa gaveta na cômoda do meu quarto. Eu não poderia perder aquela transformação de jeito nenhum.

De tempos em tempos, eu tirava a folha da gaveta para ver se aquele meu rabisco estava diferente. Não estando, eu guardava novamente na gaveta e esperava. Outras vezes, eu pegava a folha e mostrava para minha mãe, perguntava se o rabisco já tinha se transformado nas letras. A essa altura, minha mãe já tinha entendido, obviamente, o que eu estava esperando que acontecesse. Como resposta, ela dizia que ainda não, ainda não tinha se transformado em letras, mas que iria, eu não precisava me preocupar, com o tempo isso iria acontecer.

Deixei os rabiscos na gaveta até ir me esquecendo que eu estava guardando aquela folha por ali. O tempo foi passando, passando, e aquela folha se perdeu. Nunca mais a encontrei, de modo que não saberei o que estava escrito nas minhas ondinhas. Quando eu finalmente entendi o que minha mãe tinha dito a respeito dos meus rabiscos, outros cadernos já tinham palavras escritas, por mim, com letras grudadinhas umas nas outras. Letras não tão lindas quanto as da minha mãe, mas letras. Meus rabiscos tinham, enfim, se transformado em letras.