Move

Em meio às estantes de livros e pilhas de afazeres, a música sacode a cabeça e, aos poucos, o corpo.
Nem percebe quando o pé sai do chão e vai pro teto, porque os olhos estão fechados.
Uma planta brota da parede e dança junto.

Expira

Falta. Alguma coisa falta. Alguma coisa faz meu peito doer de ansiedade. A ansiedade faz com que eu não consiga entender o que eu sinto. Sinto um aperto estranho. Tudo acordou estranho como o prolongamento de um sonho sem sentido. Meus sentidos revelam tudo o que a minha voz não consegue dizer. E a minha voz às vezes é tão inútil. Talvez seja inútil tentar me desafogar daquilo que me domina devagar. Devagar o calor e as lembranças me deixam completo de sol. Sol completo de sonhos. Sonhos cheios de desejos. Desejos incompletos. Incompletos de alguma coisa que falta. Faltam coisas. Coisas que escorregam úmidas e refletem o afogamento do meu peito. Meu peito domina a minha cabeça. Minha cabeça domina os meus pulmões. E os meus pulmões parecem achar que eu estou pronto.
Inspira.
Os olhos piscam e borram luzes.
Expira.
A vertigem de olhar o chão.
Eu queria ver o céu.
Inspira.
Eu sinto tanto.
Fiz pouco.
Chorei menos.
Expira.
Onde estão?
Outra vez.
Última palavra.
Como dizer?
Inspira.
Agora sim.
Simples.
Despido.
Leve.
Poderia voar.
Expira.
Janela aberta.
Frio.
Não quero.
Quero.
Quero?
Fui.
Inspira.
Deslizar.
Assoprar a dor.
Aconchegar.
O sorriso.
O mar.
O fim de tarde.
O amor.
Expira.
Agora
eu
vejo
eu
sinto
eu
sinto
tanto.

Três elefantes

O dia tinha sido mais estressante do que o normal e eu só queria me atirar na cama para acabar logo com ele. Irritado e cansado, tinha decidido permanecer mudo para não correr o risco de machucar alguém com o meu péssimo humor. E assim fui até a casa do meu namorado, ruminando o meu rancor e arquitetando mentalmente como organizaria as palavras para responder à habitual pergunta de fim de noite (“Como foi teu dia?”) sem contaminar o questionador com a minha amargura.

– Como foi teu dia?

– Uma bosta!

E as palavras saíram desorganizadas. O plano de cautela se esvaíra e lá fui eu encher os ouvidos do rapaz.

A fome que eu sentia só piorava a situação. Queria me atirar na cama e não podia. Queria comer qualquer coisa e dormir, mas a despensa não colaborava. Não sei bem como, começamos a caminhar em direção a uma pastelaria. A essa altura, a conversa entre nós era um monólogo sobre como tudo pôde dar errado no meu dia.

Entrei na pastelaria irritado por não ter conseguido esvaziar nem metade do meu balde de lamentações e ainda ter que pausar a minha história para pensar em sabores de pastel.

Pedimos os pastéis, sentamos, eu retomei a palavra. Queria que os pastéis demorassem a ficar prontos, queria poder digerir toda a minha angústia antes disso.

Eis que surge uma garotinha sorridente com um papel na mão ao lado da nossa mesa.

Que essa pirralha não piore o meu dia, foi o que pensei.

Não achei que saberia, naquele momento, lidar com uma criança. Não pensei que teria paciência para qualquer interação relacionada a uma criança com um papel na mão. Decidi forçar um sorriso, pois sabia que a menina não era uma das culpadas pela minha vontade de explodir o mundo.

Com ar de importância, ela alcançou o papel para mim e pediu, gentilmente:

– Tu pode colar isso ali em cima?

Só então me dei conta de que havia um mural com vários cartazes colados por ali. Depois de uma breve olhada para confirmar o local que a menininha indicara, colei a folha de ofício acima de outra que, evidentemente, era obra da mesma autora. O cartaz que colei era uma divulgação, feita de caneta azul, que convidava as pessoas para assistirem à apresentação de uma atriz. Essa atriz estava desenhada ao lado: cabelos longos e azuis, assim como o resto do corpo, e um vestido cor de marca texto amarelo. No canto direito do desenho, lia-se “Egreso R$3,00”.

– Que bonito! – falei.

Mas não naquele tom de voz que os adultos às vezes utilizam para agradar as crianças. Foi sincero, eu realmente achei lindo. Aliás, não sei dizer o que me fascinou mais.

Talvez tenha sido o fato de a menina dar tanta importância para o seu cartaz feito à mão que estava ali no meio de todas as divulgações impressas, coloridas e plastificadas.
Talvez tenha sido a gentileza com que ela pediu para que eu colasse o cartaz lá em cima, afinal, se ela não alcança aquela altura, que problema há em pedir a um estranho um favor tão simples?
Talvez tenha sido mesmo a beleza do desenho, ou das palavras que demonstravam o quão lógica é a criança na aprendizagem da escrita.
Talvez tenha sido o evento divulgado em si, e a facilidade com que a menina se denominava atriz e nos convidava para assistir a um de seus espetáculos.
Talvez tenha sido o preço do ingresso.

Enfim, voltei a me sentar e decidi observar o cartaz abaixo, o único dos outros que também havia sido feito à mão. Dessa vez não se tratava de um anúncio, mas de uma declaração de amor: no centro, um coração grande e azul; nas bordas, uma frase que dedicava o desenho a vários “melhores amigos”.

Também elogiei o desenho, e logo começamos a conversar com a autora. Descobri que ela tinha oito anos de idade, ela descobriu que a gente tinha mais do que isso. E quando o assunto parecia estar ficando chato, ela, subitamente, perguntou:

– O que vocês acham que eu sou mais craque em desenhar: cachorro ou elefante?

– Elefante! – falamos.

Ela levou a mão no rosto e, quase envergonhada, disse que tínhamos acertado.

– Eu não sei desenhar elefantes… – disse eu em resposta.

A menina pareceu extremamente preocupada e alegre ao mesmo tempo.

– Querem que eu ensine vocês??? – perguntou. E, sem esperar resposta, foi até o balcão e chamou o dono da pastelaria pelo nome.

Ele, que fora carrancudo ao nos receber, abriu um sorriso para a menina e perguntou o que ela queria. Não demorou muito tempo para ela estar sentada conosco, com uma caneta azul e três saquinhos de papel (aqueles usados para colocar o pastel dentro) na mão.

– Primeiro,  a gente desenha uma bola bem grande! – disse a menina, enquanto desenhava no seu papel e passava a caneta para nós.

– Depois, duas bolas, uma de cada lado!

Começamos a desenhar, seguindo silenciosamente os passos indicados.

– Agora a gente desenha os olhinhos do elefante, assim… Depois a gente faz uma cordinha, outra cordinha e várias cordinhas pra fazer a trombinha dele… Depois a gente faz outra cordinha pra fazer as patinhas… Aí a gente desenha as unhas do elefante, fazendo uma nuvenzinha assim…

– E será que a gente tem que pintar as unhas do elefante? – perguntou meu namorado.

Ele sabe lidar com criança, pensei. A menina sorriu, e eu também.

Elefantes terminados, ela olhou para os três. Riu rapidamente do elefante do meu namorado, comparando-o com um rato.

– Ah, o meu elefante não ficou tão bonito quanto o teu! – reclamei.

– Mas não ficou tão ruim! – respondeu ela – Tá igual ao meu!

Pensei em dizer que não estava igual, não, e apontar as diferenças nos traços de cada elefante. Antes de poder falar alguma coisa, entretanto, dei mais uma boa olhada nos desenhos e entendi, enfim, que os três estavam iguais.

Ainda seguindo instruções da professora, viramos os papéis para desenhar a parte de trás do elefante, que consistia basicamente em refazer as bolas, as patinhas (dessa vez só duas, não quatro!) e as cordinhas que formavam a trombinha. Por fim, era só desenhar um rabinho de porquinho e estava pronto! Três elefantes desenhados e seis sorrisos sinceros.

No segundo seguinte, a mãe da menina chamou pela filha e os pastéis ficaram prontos. A menina, afobada, pegou os três desenhos e perguntou os nossos nomes. Em seguida, assinou os papéis, devolveu o elefante de cada um de nós e ficou com o dela.

Na saída da pastelaria, ainda pude ouvir ela contar para a mãe quem éramos nós e o que tínhamos acabado de fazer.

– Melhorou um pouco o teu humor? – quis saber meu namorado, quando já estávamos a sós.

– Muito! – respondi.

Continuei, enquanto caminhávamos para casa, a extravasar a angústia acumulada.
Percebi, contudo, que eu já estava mais leve.
No fim, posso dizer que aquele dia foi bom: aprendi uma porção de coisas, inclusive a desenhar um elefante.
E tudo isso graças a uma criança de oito anos que soube lidar comigo.

treselefantes

Deixar de me ser

Eu sou meu e vivo em mim o tempo todo.
Penso na minha cabeça, vejo com meus olhos, movimento o meu corpo, ouço com meus ouvidos, falo a minha voz.
Tento fazer com que eu faça o que eu gostaria que eu fizesse.
Nem sempre dá certo.

Queria deixar de me ser por um tempo.
Dormir em mim e acordar em outro, mas sem ser eu a pensar no outro.
Queria descansar um pouco de mim, que comigo convivo o dia inteiro, todos os dias.
E poder relaxar um pouco do fardo de precisar ser um ser que precisa ser um ser.